sábado, outubro 22, 2005

Espectro de mim

Sinto-me cansado. Sabes? Sinto-me completamente esgotado. Pelo menos hoje dormi muito, acordei perto das duas da tarde, com um sabor amargo na boca, como se tivesse bebido na noite anterior. Senti-me sozinho, no quarto da minha infância. Conheces aquela sensação quando te encontras num espaço só teu? Em que tudo está da forma que queres, mas em que não há vida além de ti próprio? Estava eu, assim, quando acordei.
Ao longo do corpo percorria-me um calor abrasivo provocado pelo calor combinado do aquecimento, do edredon e do cobertor. Curiosamente, os lençóis ainda são de Verão.
Como me apetecia poder continuar a dormir. Gostava de ficar a dormir durante toda uma semana, ou durante um mês. Sem interrupções. Se calhar, assim, conseguia descansar, que achas?
A verdade é que, quando acordo tenho a sensação de nem sequer ter dormido. A noite passou no momento em que cerrei as pálpebras e as voltei a abrir. Era escuro antes de o fazer, continua escuro depois de abrir os olhos. O dia e a noite já não se distinguem. Tudo é uma luz cinzenta escura, onde antes era cor.
Pensas que ceguei? Não. Porque dizes tu algo tão terrível? Como é que podes pensar que ceguei?
Morreram os meus olhos, mas ainda oiço, ainda cheiro, ainda consigo sentir as paredes molhadas, quando tacteio o caminho. Eu não estou cego.
Que carta é essa que sai em baralho? É uma paus? É uma ouros? O que é? Um três de copas. Bom. É uma boa carta. É uma carta de equilíbrio. Diz-me que devo estar no caminho errado. Não é possível! Eu estava a tocar a parede, vim sempre a tocá-la até aqui e conheço-a de cor. De certeza que é um três de copas? Estás a ver bem? Não será um dois?
Quem quer saber do que dizem as cartas, também? Elas não nos conhecem. E não sabem o que vamos fazer a seguir, não o podem prever. São conspirações de gente que se quer guiar por oráculos para poder dizer que nao tem culpa. Eu acho que a parede é um guia muito melhor que o baralho. Vou continuar a tacteá-la até onde conseguir.
É sempre lisa, sem esquinas, e segue sempre em frente. Já devemos ter andado um terço do percurso. Que te parece? Ainda aí estás? Ainda vens comigo, ou ja fechaste esta janela no teu ecrã? Eu vim ter contigo, aqui. Dei-te uma parte preciosa do meu tempo. Tempo de quem não consegue ver o mostrador do relógio, ou a própria cara de manhã. E tu? Dás-me algum do teu tempo? Dás-me o tempo de me leres, e de descobrires onde esta parede nos leva? Vá lá... não me largues agora, que eu já não posso voltar para trás e para onde vou torna-se penoso ir sozinho. Podes seguir outra direcção se quiseres, podes agarrar outra parede que te guie melhor que esta, mas não queria que voltasses para trás.
Já falta pouco, vês? Quantas linhas? Não sei ao certo, mas já não podem ser muitas. É que, sabes... eu estou cansado e as noites já não me revigoram. Durmo parece que sonho, mas não, é só o espectro das cores do dia. Agora é tudo cinzento escuro, já to tinha dito? Desculpa, então. Dá-me o teu tempo, peço-te.
Não. Não insistas. Eu não estou cego. Só não consigo ver.

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