quinta-feira, junho 17, 2010

o princípio da incerteza

crescemos e mudamos.

temos essa percepção, de que tudo e todos os que nos rodeiam crescem num ciclo de longos ritmos e tendências. à medida que de uns nos afastamos, outros há que de nós se aproximam (ou a estes nos aproximamos) com alguma consciência do que fazemos.

existe um sentimento grave de perda e frustação quando nos afastamos de um amigo querido, por nossa própria vontade ou por força das circunstâncias em que ambos nos vemos envolvidos. existe um sentimento de dúvida sobre os motivos para o afastamento de alguém que amamos ou que amámos num determinado momento; um sentimento que nunca conseguiremos apagar totalmente do nosso espírito, como se se tratasse de uma marca "kármica", um desafio que transportaremos, possivelmente, para uma nova vida terrena - como frequentemente se encontra referência em tantas filosofias orientais. e faz-se um esforço para avançar, apesar de este sentimento de profunda perda - tão semelhante àquele sentido na morte ou separação de um ente querido, guardado nas nossas memórias.

a vida e a morte misturam-se profundamente no sentido de uma amizade, quer disso tenhamos consciência ou não. isto porque a amizade parece transcender a dimensão física das coisas e, como tal, nunca poderá ser reconduzida ao alpha e ao ómega pelos quais nos regemos neste mundo - a vida e a morte, o bom e o mau, o sim e o não. o dualismo do nosso mundo físico não se adequa à natureza eternamente inteligível da amizade. por mais anos que vivamos e convivamos com o nosso amigo jamais conseguiremos saber tudo sobre ele - porque iniciar uma relação de amizade é como começar a ler pelo meio um livro sem princípio nem fim.

na alegria dos novos encontros, reacende-se na alma uma esperança de partilha, em que é permitido iniciar uma nova leitura e em que, por contrapartida, alguém nos lê também a nós - pelo meio, como é suposto ser, folheando páginas, por vezes, da direita para a esquerda e, noutros casos, em sentido contrário.

e, nesta dialéctica da leitura mútua, há uma influência recíproca. qual Heisenberg, a mera observação parece ser por si só suficiente para interferir com o objecto observado. é claro que, ao formular esta hipótese, Heisenberg procurava explicar matematicamente fenómenos no âmbito da física cartesiana e da quântica, mas quantas vezes um aluno num teste não se sentiu perturbado ou de alguma maneira influenciado apenas por sentir o olhar do professor sobre si? quantas vezes não adaptamos o nosso comportamento à presença de um amigo ou por estarmos despertos para a existência de uma câmera de segurança num elevador?

assim, estamos todos tão singela e poderosamente ligados que assumimos uma amizade como nossa muito antes de percebermos que existe um amigo a observar-nos, a nós e ao momento presente da nossa história. muitas vezes só disso ganhamos consciência quando este começa a folhear as páginas anteriores de nós próprios, questionando-nos sobre o que fomos ou interregando sobre o rumo que permanentemente vamos traçando e redefinindo para as páginas seguintes.

as pessoas que nos marcam - os amigos - têm este virtuosismo de querer conhecer o que somos, o que fomos e o que vamos ser, talvez como esperando - como tendo esperança - de que em nós se possam conhecer a si ou ao caminho para si próprias e para a realização do seu potencial humano.

algumas vezes, deixá-las entrar é um passo difícil que exige que nos tornemos vulneráveis e que deixemos vulneráveis quem connosco convive na maior intimidade - deixar alguém verdadeiramente entrar e escutar os nossos mais íntimos pensamentos transforma-se num verdadeiro acto de amor. Neil Gaiman descreveu bem o amor que liga as pessoas - quer estas sejam verdadeiros amantes ou pessoas que se apreciem mútua e respeitosamente através de uma amizade:
«Have you even been in love? Horrible, isn't it? It makes you so vulnerable. It opens your chest and it opens your heart and it means someone can get inside you and mess you up. You build up all these defences. You build up this whole armour, for years, so nothing can hurt you, then one stupid person, no different from any other stupid person, wanders into your stupid life...


You give them a piece of you. They don't ask for it. They do something dumb one day like kiss you, or smile at you, and then your life isn't your own anymore. Love takes hostages. It gets inside you. It eats you out and leaves you crying in the darkness, so a simple phrase like "maybe we should just be friends" or "how very perceptive" turns into a glass splinter working its way into your heart. It hurts. Not just in the imagination. Not just in the mind. It's a soul-hurt, a body-hurt, a real gets-inside-you-and-rips-you-apart pain. I hate love.»
na maior parte das vezes, a grande dificuldade está em deixar essa pessoa partir, sobretudo quando o tempo e os eventos que passaram juntos são já tão maiores que a percepção individual que cada um teve deles, ao ponto de torna-se difícil sequer lembrar o "como" tudo começou.

assim, sei dizer que tenho pelo menos um desejo para esta vida: não mais conseguir recordar como comecei a conhecer um amigo.

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